Questões de gênero nos ritos fúnebres dedicados aos Heróis no período homérico: ações desenvolvidas por homens e mulheres nas próthesis e ekphorá

 

Lennyse Bandeira *

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Resumo: A presente pesquisa versa sobre a demarcação de gênero identificada nas formas de organização e procedimentos ritualísticos executados por homens e mulheres nos rituais funerários dedicados aos heróis na civilidade grega do período homérico.

Palavras-Chave: Grécia, Ritos Fúnebres, Gênero.

 

A civilidade homérica, que surgia das ruínas da sociedade micênica, não tinha evoluído economicamente e socialmente o suficiente para chegar à fase de uma organização política da Cidade-Estado. Entretanto, os papeis sociais atribuídos às civilidades não eram ligados ao parentesco e o rei exercia a função de juiz, legislador e comandante. As cerimônias, convenções, rituais e código de honra eram efetuadas pelos áristoi em formas de comensalidade, troca de presentes, ritos fúnebres e os sacrifícios aos deuses. Era um período no qual a maior importância era possuir virtude em vida, a areté que expressa o conceito grego de excelência, ligado à noção de cumprimento do propósito ou da função a que o indivíduo se destina. Além disso, manter o status social de aristoí após a morte, no qual ambos eram reafirmados e vivificados pela imagem funerária.

No que concerne os ritos fúnebres, ponto principal deste trabalho, os cultos dedicados aos heróis possuem origem da Idade do Ferro se estendendo até o período clássico. Jean-Pierre Vernant (2006, p. 44) afirma que o culto aos heróis possuía um grande valor cívico, pois o prestígio depositado nas homenagens aos personagens por meio dos ritos funerários desempenhavam para a civilidade o papel de símbolo glorioso, cuja localização dos túmulos era conservada em segredo, pois cabia a pólis a sua proteção e garantia de salvação.

De acordo com John Boardman e Donna Kurtz (1971, p. 142) os ritos fúnebres possuíam três etapas principais, a saber: a confirmação da morte, na preparação do corpo do morto e na própria exposição, acompanhada da lamentações: que se denomina como próthesis. O ritual de preparação constituía na purificação do corpo através do banho, para eliminação do miasma associado à morte. Ademais, o corpo era submetido a óleos, vestimentas e adornos com flores e instrumentos pessoais como ferramentas de batalha e joias. A seguir, o corpo era colocado em uma esquife e coberto com uma manta fúnebre para que fosse exposto às lamentações do público e seus familiares.

Para Paula Argôlo (2006, p. 50) a próthesis consistia em um conjunto de preparatórios com duração máxima de um dia, no qual o corpo do morto era submetido a uma série de cuidados feitos pelos homens e mulheres da família. Após dispor o corpo sobre uma klíne, a purificação era feita a partir da limpeza do corpo, depois era ungido, vestido e adornado para que os familiares pudessem fazer lamentações e prestar homenagens, como demonstrado na imagem a seguir:

 

Figura 1 - Ânfora com representação de próthesis feminina pintada por Maestro del Dípylon. 760-750 BC .  Pitura negra. Atenas NM 804. Museu Nacional de Atenas, Grécia. Fonte: AHLBERG, G. Prothesis and Ekphora in Greek Geometric Art. Goteborg, 1971. p. 30-31.

 A segunda etapa consiste na ekphorá, o cortejo fúnebre. Espaço no qual havia momentos de lamentações junto aos cantos e danças em honra ao morto. Paula Argôlo (2006, p. 50-51) destaca ainda que a cerimônia ocorria no terceiro dia após o falecimento, antes do amanhecer. A seguir, imagem de vaso cerâmico com representação de próthesis e ekphora:



Figura 2 - Cratera com cena de próthesis e ekphora masculina pintada por Maestro del Dípylon. 750 a.C. Paris. Louvre A 517. Fonte: AHLBERG, G. Prothesis and Ekphora in Greek Geometric Art. Goteborg, 1971.

 Por fim, chegando ao local de sepultamento, o corpo podia ser inumado ou cremado e suas cinzas eram depositadas em urnas funerárias, e enterrada numa cova seguidas de libações, banquetes e sacrifícios, além da realização de jogos fúnebres, no caso dos rituais dedicados aos heróis que possuíam corridas de carros, jogos atléticos e lutas, seguidos de premiações.

Na Ilíada (XXIV:429-436), destaca-se o rito fúnebre dedicado ao herói Heitor, no qual seu cadáver é velado em sua casa durante nove dias, sendo no décimo dia sepultado, no décimo primeiro dia é erguido o seu túmulo e no décimo segundo dia é organizado um combate em honra ao herói. No entanto, identifica-se momentos da próthesis de Heitor, no qual Aquiles ordena que as criadas façam a preparação e a purificação do seu corpo:

“(...) chamando as criadas, ordenou-lhes Aquiles que o lavassem e untassem, à parte, para que Príamo não visse o filho, receoso de que, em sua alma aflita, não pudesse conter a cólera à vista de Heitor, e turbasse o coração de Aquiles, e este o matasse, violando as ordens de Zeus. Portanto, depois que o lavaram e untaram de óleo, envolveram-no as criadas no belo manto e na túnica.”

Ilíada, XXIV: 429

 

Nesse trecho, identifica-se a ekphorá dedicada ao héroi Heitor, no qual destacamos a participação exclusiva dos homens:

Durante nove dias para lá carreara imensa quantidade de lenha. Mas quando surgiu a décima aurora aclarando os humanos, levaram da cidade o corpo do temerário Heitor, derramando lágrimas, colocaram-no no ápice do monte de lenha e lhe deitaram fogo.
(...) primeiro apagaram a fogueira com um vinho flamejante, onde quer que a houvesse percorrido o ardor do fogo. Depois, os ossos brancos foram recolhidos pelos irmãos e companheiros, em pranto, e grossas lágrimas deslizavam-nos em um vaso.”

Ilíada, XXIV: 434-436

A partir do trecho destacado na documentação textual, percebe-se que há fronteiras de gênero nas atividades ligadas ao ritual funerário do herói Heitor, no qual as mulheres escravas tinham seus espaços apenas na próthesis, sendo responsáveis exclusivamente pelo cuidado com o corpo do morto, em obrigações de limpá-lo e adorná-lo. Nesse sentido, Robert Garland (1985, p. 21) destaca que o processo de purificação eram realizados pelas mulheres mais velhas. Adiante, no momento da ekphorá no rito fúnebre dedicado ao herói, percebe-se que os homens da família e seus companheiros pegam os seus ossos e depositam em um vaso, e depois do sepultamento prestam homenagens ao herói por meio banquetes e combates.

Nessa perspectiva, Paul Cartledge (2009, p. 164) afirma que a pólis possuía espaços segregados, a saber: de um lado, a esfera política, constituída pelos homens, e do outro, as atividades do lar, destinadas às mulheres. Entretanto, as práticas religiosas destinadas às mulheres eram consideradas uma confirmação da participação social da mulher. Isto é, o domínio feminino nos rituais fúnebres está ligado à noção corrente de que a continuidade da civilidade reside principalmente nas mulheres, por meio dos cuidados e honras prestados aos mortos.

Bibliografia

AGÔLO, Paula Falcão. Imagens da família nos contextos funerários: O caso de Atenas no período Clássico. (Dissertação de Mestrado em Arqueologia). Universidade de São Paulo: MAE/USP, 2006

BOARDMAN, J.; KURTZ, D. C. Greek Burial Customs. London, 1971.

CARTLEDGE, P. (Org.). História ilustrada Grécia antiga. Tradução Laura Alves e Aurélio Rebello, 2 Ed. São Paulo: Ediouro, 2009.

GARLAND, G. The Greek Way of Death. New York, 1985.

HOMERO. Ilíada. Trad. de Octávio Mendes Cajado. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1961.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Tradução Joana Angélica d’Ávila Mela. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.


 

 

 

 

 

Lennyse Teixeira Bandeira* - Lattes


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ)

Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA/UERJ/CNPQ)

Pesquisadora do Núcleo de Estudos Multidisciplinares de História Antiga e Medieval (NEMHAM/UEMASUL)

Bolsista CAPES atualmente desenvolvendo o projeto intitulado: “Exercício de experimentação comparada: a necromancia como relação de gênero através das práticas mágicas na Grécia, séculos VIII-IV A.C.”

E-mail: lennysebandeira@hotmail.com